sexta-feira, 14 de maio de 2010

Terapia de espelhos em reabilitação

Observar o próprio reflexo em um espelho pode evocar experiências insólitas e até mesmo bizarras. Mas antes que alguém ache que resolvi falar sobre modelos anoréxicas ou sobre o sofrimento psíquico causado pela queda de cabelos, vou me adiantar e ir direto ao assunto:
Hoje vou falar de como um espelho é capaz de enganar o cérebro, e como este fenômeno pode ser utilizado em reabilitação.

Espelho, espelho meu...
A forma mais simples de se utilizar um espelho pra enganar o cérebro envolve a colocação de um membro por detrás de um espelho que está situado ao longo da linha média de um observador (Foto1). Este observador tenderá a perceber o reflexo como o membro que está escondido atrás do espelho. O mais intrigante é que isso não acontece só com a imagem estática, mas também com o movimento do membro que está sendo refletido. Percebam que usei o termo observador e não paciente. Isto porquê este fenômeno é comum a todos nós.

Figura 1 - O reflexo da perna esquerda cria a ilusão de se estar observando a perna direita.

Eu já fiz esta experiência, e posso dizer que após poucos segundos, a sensação é a de "ver através" da superfície do espelho, como se fosse realmente transparente, como se eu realmente estivesse observando o membro que está escondido por trás do espelho. É algo muito estranho, pois seu córtex frontal (lógico e racional) "sabe" que aquilo é um reflexo, mas a informação visual lhe diz que aquilo é realmente parte de seu corpo. E a coisa fica ainda mais estranha quando você movimenta o membro que está sendo refletido. Seu cérebro acredita que seu membro está se movendo, mesmo sem a informação proprioceptiva do movimento!
Como eu disse anteriormente... Bizarro!
Mas calma, existe uma explicação para isso.

O cérebro visual
Diversos estudos demonstram que existe uma estreita ligação entre as ações reais e as imaginárias. Foi observado, por exemplo, que tanto movimentos reais quanto imaginados, ativam as mesmas redes neurais; particularmente a área motora suplementar, o córtex pré-motor e o cerebelo.

Refletindo a respeito
Mas agora vamos ao que interessa: Como este fenômeno pode ser utilizado em reabilitação?
Neste sentido, existem quatro observações que podem ser especialmente relevantes para nós. Por conveniência, vamos supor que eu esteja me referindo a uma pessoa que esteja com a sua mão direita por trás de um espelho, enquanto observa a imagem refletida de sua mão esquerda.

(1) O feedback visual domina o feedback somatosensorial na representação cortical proprioceptiva.
Quando o espelho é ajustado de tal forma que a localização visual do braço direito seja diferente da localização proprioceptiva, a localização percebida da mão direita é deslocado em direção à localização visual.
Em outras palavras: O nosso cérebro prioriza o feedback visual em detrimento do feedback sensorial. É mais ou menos como a teoria da comporta de dor: Se eu tenho duas informações chegando ao cérebro. Uma visual e outra somatosensitiva; nosso cérebro irá preferir acreditar naquilo que ele está vendo em detrimento àquilo que ele está sentindo.

(2) A terapia com espelho aumenta a excitabilidade do córtex motor.
Este efeito depende de um grupo especializado de neurônios chamados neurônios-espelho. Estes neurônios são ativados tanto durante a observação de uma tarefa quanto durante a execução da tarefa em si.
Assim, ao observar o movimento da mão direita, o sistema de neurônios-espelho pode ativar os processos motores que estariam envolvidos no movimento da mão direita.

(3) Experiências sensoriais podem ser evocados a partir de informações visuais.
Passar uma escova apenas na mão esquerda dá a informação visual de que ambas as mãos estão sendo escovadas. Neste ponto uma experiência curiosa revela um fenômeno igualmente curioso: Após cerca de três minutos de escovação, muitas pessoas percebem a escovação em ambas as mãos, mesmo sabendo que a mão direita não foi escovada. Este tipo de fenômeno também foi observado em pacientes amputados, que às vezes percebemos um toque em seu membro intacto como também ocorrendo no membro amputado. Neste cada caso, a entrada visual substitui a (falta de) de entrada tátil, sendo suficiente para produzir o sensação de toque.

(4) A entrada visual aumenta a sensibilidade tátil.
A sensibilidade tátil evocada ao visualizar a imagem refletida, se mantém mesmo após a cessação da entrada visual, o que é importante, pois implica em mudanças de longo prazo no processamento cortical. E portanto de grande relevância, pois indica que os efeitos benéficos alcançados com a terapia utilizando espelhos não acabam depois que o paciente para de se olhar no espelho.

Aplicações Clínicas:
O uso de espelhos para a reabilitação - por favor, nada de rotular este recurso de espelhoterapia... tudo tem limites! - Parece ser bastante promissor em algumas situações específicas como o tratamento da dor fantasma de amputados. Recentemente, foram publicados trabalhos interessantes sobre a utilização deste recurso para o tratamento da síndrome de dor complexa regional tipo II (síndrome ombro-mão) e também na recuperação de movimentos em hemiplégicos pós AVC.
Vale a pena também ressaltar que os mesmos efeitos neurais, ou seja: ativação de áreas motoras e pré-motoras, também pode ser obtido ao se utilizar recursos de realidade virtual para "enganar o cérebro", como o caso clínico publicado em janeiro neste mesmo blog, sobre adolescentes com encefalopatia crônica que recuperaram movimentos da mão utilizando um video-game de realidade virtual.
Pra terminar, me comprometo a falar um pouco mais sobre este assunto, pois várias pessoas se manifestaram por e-mail e também em comentários logo nas primeiras 24 horas em que esta postagem foi ao ar.

Até logo p-p-p-pessoal ! ! !

Referências:
Is mirror therapy all it is cracked up to be? Current evidence and future directions. Pain 138 (2008) 7–10

Using Motor Imagery in the Rehabilitation of Hemiparesis Arch Phys Med Rehabil 2003;84:1090-2.

MIRROR THERAPY IN PATIENTS WITH CAUSALGIA (COMPLEX REGIONAL PAIN SYNDROME TYPE II) FOLLOWING PERIPHERAL NERVE INJURY: TWO CASES. J Rehabil Med 2008; 40: 312–314